Reflexões comportamentais em tempos de pandemia
Tempos difíceis, liberdades individuais cerceadas, cidades paradas, disrupção das rotinas, sistemas de saúde operando no limite, a política em ebulição e a recessão econômica que já é uma realidade... Nas palavras de um amigo: “Estamos vivendo uma Pandemia e um Pandemônio”.
Este contexto é terreno fértil para a observação de uma série de fenômenos comportamentais e uma melhor compreensão sobre eles pode nos ajudar:
Enquanto indivíduos na adoção necessária de novos hábitos e na compreensão de como nos sentimos;
Enquanto sociedade na adoção de formas mais eficientes de comunicação e mobilização dos cidadãos pelos gestores e líderes na linha de frente da definição das medidas de contenção a serem tomadas.
Este artigo é uma segunda reflexão sobre a observação de alguns destes fenômenos em ação. (Para o primeiro artigo acesse Vieses comportamentais em tempos de Coronavírus)
A FADIGA DA ADAPTAÇÃO
Depois de mais de 2 meses vivendo em quarentena e enfrentando as restrições impostas pelas autoridades para aumentar a segurança sanitária nos sentimos cansados. Esta fadiga é mental, física e emocional.
Tivemos que adotar novos hábitos: lavar as mãos, usar álcool gel, desinfetar as compras e reorganizar nossas rotinas: home office, home schooling, cuidados da casa, compras virtuais e, além disso tudo, nos informar e aprender sobre tudo o que está acontecendo.
Com isso nosso cérebro está operando muito mais com o “Sistema 2” do que o habitual e isto consome mais energia e é mais cansativo. Explico: Daniel Kahneman propõe que em nosso cérebro funcionam dois sistemas operacionais: o “Sistema 1” que é rápido, automático, inconsciente, e permanente e o “Sistema 2” que é lento, pesado, sequencial, deliberativo, analítico; ou seja, o “Sistema 1” é nosso eu intuitivo e o “Sistema 2” nosso eu racional.
Embora quando pensamos em nós mesmos, nos identificamos com o Sistema 2 é o Sistema 1 que opera a maior parte do tempo determinando nossas escolhas e comportamentos no dia a dia. E isto é bom pois nos permite desempenhar inúmeras atividades e representa uma economia de energia para nosso corpo já que o sistema 2 demanda mais energia para operar.
No entanto, quando enfrentamos uma situação desconhecida e que exige comportamentos que não nos são habituais o Sistema 2 toma a frente da operação. Um exemplo corriqueiro: para sair de casa é automático para a maioria de nós pegarmos as chaves, carteira, celular, algo que exige pouco alerta mental e praticamente nenhum desgaste de nosso cérebro. Com a pandemia, agora precisamos também da máscara e do álcool gel que não fazem parte de nosso hábito e requerem um esforço consciente de lembrança. Isto acontece também em tarefas mais complexas como o home office que nos expõe à situações e formas de interações diferente no trabalho e que exigem de nós maior esforço e concentração afinal é muito mais difícil interpretar reações e se expressar de forma efetiva virtualmente do que pessoalmente - estamos treinados e habituados com a comunicação presencial mais do que com a virtual.
Teremos que lidar com esta sensação de cansaço por algum tempo até porque o relaxamento da quarentena apresentará novas regras e exigirá a adoção de novos comportamentos aos quais teremos de nos habituar. No entanto, ao ter consciência que estamos exigindo mais de nós mesmos e de nosso organismo podemos ser mais tolerantes conosco e conscientemente nos propiciar momentos de prazer e relaxamento para aliviar. E porque não usar de pequenos “nudges” que nos ajudem a adotar os novos hábitos (deixar as máscaras perto das chaves de saída ou da porta, álcool gel no carro e na bolsa, programar alarmes para pausas para um cafezinho ou chocolate ao longo do dia, ...)
Vale lembrar também que a qualidade de nossas decisões é muito afetada por nosso estado mental: cansados tomamos decisões piores. Assim, devemos conscientemente optar por refletir sobre assuntos mais complexos quando nos sentimos menos cansados (após uma boa noite de sono ou uma refeição restauradora) e lembrar que como todos estamos “com os nervos à flor da pele” discussões bobas ganham dimensão maior do que necessário e discussões difíceis podem ser ainda mais duras que o normal. Exercitar a empatia torna-se mais importante.
A DIFICULDADE DE SACRIFICAR O PRESENTE EM PROL DO FUTURO
Um dos vieses comportamentais mais conhecidos é o Hyperbolic Discounting que versa sobre o como valorizamos recompensas presentes muitos mais do que recompensas futuras e sentimos os sacrifícios e custos presentes de maneira mais intensa do que os sacrifícios e custos futuros.
Isso faz com que seja tão difícil a decisão de adotar um lockdown mais rígido vs uma quarentena mais leve no presente por uma re-abertura num horizonte de tempo menor no futuro.
A França adotou um lockdown bastante rígido comparado à nossa quarentena que será mais longa. A intenção aqui não é discutir a melhor estratégia mas sim as dificuldades de aceitação de um sacrifício maior no presente em prol de um benefício que sentiremos apenas no futuro (e sobre o qual há incerteza).
A estratégia francesa surtiu resultados no controle da pandemia e o país agora está em processo de reabertura mas o governo recebeu fortes críticas e enfrenta certa “revolta” dos cidadãos franceses que agora estão levando a tradição do momento do Apéro (drink pré jantar ao final da tarde início da noite) para a rua: o “Apérue”. Este é um ótimo exemplo de “Reactance” nossa a tendência a nos rebelar quando temos nossa liberdade ameaçada ou cerceada. ¹
UMA COMUNICAÇÃO MAIS EFETIVA
Quando olhamos os países mais bem sucedidos no controle da pandemia em busca de fatores de sucesso um dos pontos frequentemente trazidos junto com a agilidade de reação é a qualidade da comunicação: direta, clara e consistente.
Como profissional de marketing acredito no poder da comunicação para mobilizar, sensibilizar e mudar comportamentos e tenho observado e refletido muito sobre o que considero boas práticas nesta frente na qual tanto as autoridades governamentais e sanitárias quanto a mídia têm um papel a cumprir.
Num primeiro momento da crise era necessário criar o senso de urgência em todos e o entendimento da seriedade da situação. A imagem do final de março do Papa Francisco sozinho na Praça de São Pedro rezando pelo mundo em Pandemia é destas imagens que diz tudo e sensibiliza, não é preciso decifrar, decodificar, analisar, entender... você simplesmente sente. Uma comunicação efetiva para o Sistema 1!
No artigo anterior falei sobre o viés do Identifiable Victim Effect e como nos sensibilizamos mais com uma pessoa e sua história do que com números. Uma das grandes preocupações que me ocorreu logo no início da pandemia é a gradual de-sensibilização quanto ao número de vítimas (contaminados e mortos). Ao ver todos os dias estes números na TV, portais de notícia, redes sociais, vamos nos distanciando e o impacto dos mesmos é cada vez menor... Com certeza ficamos mais horrorizados quando os mortos na Itália atingiu 25.000 pessoas do que quando esta triste marca foi alcançada no Brasil, o mesmo com o horror dos números de mortos por dia em NY nos dias de pico do ciclo por lá...
Neste sentido achei excelente a abertura do JN de 06 de maio na qual Bonner propôs uma reflexão sobre a diluição do baque pelo número de mortes causadas pelo Coronavírus no Brasil que causou grande repercussão e virou trending topics no Twitter.
Temos uma tendência clara à copiar o comportamento dos outros tanto pelo sentimento de pertencimento quanto por nos poupar a energia da decisão afinal nosso cérebro é preguiçoso e busca sempre o caminho mais simples. “Se todos estão fazendo, deve ser o certo” é como pensamos e este viés é conhecido como Efeito Manada. Neste contexto, a comunicação deveria exaltar a adesão ao comportamento desejado e não ao contrário. Ao mostrar a grande adoção de máscaras nas ruas mais pessoas adotarão este comportamento.
Ao ver as autoridades e jornalistas usando o equipamento de proteção vamos realizando que este é o comportamento a ser adotado (Social Norm).
Um bom exemplo de ferramenta para incentivar este efeito manada é o selo do Instagram “Em casa”. Sendo usado por celebridade, influenciadores, pessoas que admiramos e pessoas com as quais nos identificamos nos indica um comportamento desejado, possível e nos engaja.
Acredito também que enaltecer os crescimentos dos índices de adoção da quarentena, ou as regiões com maior adesão, deveria ser mais efetivo em incentivar as pessoas a ficarem em casa do que mostrar a baixa adesão ou as regiões com menor adesão (Fraiming).
Sensibilizar para um comportamento responsável é algo difícil. Embora tenhamos a consciência de que text & drive é um comportamento de risco continuamos a fazê-lo, o mesmo vale em relação a drink & drive e tantos outros exemplos. Isso acontece pois, em geral, nos acreditamos menos vulneráveis do que os outros, um reflexo do viés Overconfidence. Some-se à isso a nossa tendência a sermos mais fiéis aos compromissos assumidos com outras pessoas (ir correr com um amigo 3 vezes por semana) do que compromissos assumidos com nós mesmos (fazer exercício 3 vezes por semana) e provavelmente a comunicação “ao evitar circular você reduz o risco de aumentar o número de contaminados” deveria ser mais eficaz do que “ao evitar circular você evita o risco de se contaminar”. Apresentar a quarentena como um comportamento em prol da segurança de médicos, profissionais da saúde que se arriscam por todos ou dos membros mais vulneráveis de sua família deve ser mais efetivo do que apresentá-la como uma medida de segurança para o próprio indivíduo.
Enfim, entendendo melhor como nosso cérebro funciona, como tomamos decisões e os vieses a que estamos sujeitos podemos ser mais efetivos tanto individual quanto coletivamente no enfrentamento desta crise.
Reconheço que é sempre muito mais fácil refletir a posteriori, que foi o que fiz nos exemplos trazidos aqui, mas a observação e reflexão sobre bons e maus exemplos associada a um pensamento pró ativo sobre conteúdo e forma da comunicação e o uso de intervenções (nudges) que facilitam a adoção de comportamentos podem nos ajudar nas próximas fases que ainda estão por vir no enfrentamento da pandemia.