Vieses comportamentais em tempos de Coronavírus

Tempos difíceis, liberdades individuais cerceadas, cidades paradas, mercados com alta volatilidade, pessoas assustadas, sistemas de saúde operando no limite, discussões políticas em ebulição, o mundo a beira de uma recessão... 

A Pandemia do COVID 19 deve ser a maior crise de nossa geração, um grande desafio mundial que vem provocando uma série de discussões e reflexões importantes tanto em nível individual quando social a respeito do comportamento humano, de prioridades e escolhas difíceis.

Neste contexto é possível observar a atuação de uma série de vieses comportamentais que podem levar a decisões e comportamentos equivocados. Em um momento como este em que a qualidade de nossas decisões individuais e também de nossos líderes, podem ter grande impacto sobre os desdobramentos desta crise faz-se necessário estar ainda mais atento aos vieses e prezar por processos que favoreçam melhores decisões.

Este artigo é uma reflexão sobre a observação de alguns destes fenômenos em ação e algumas sugestões do que fazer para contorná-los. 

Os vieses já começam a atuar na forma como cada um de nós interpreta a Pandemia. Um dos vieses cognitivos mais poderosos e perigosos, ao meu ver, é o “Confirmation bias”. Este viés atua na forma como consumimos e absorvemos informações; inconscientemente favorecemos informações que confirmam nossas crenças e valores. Em outras palavras, instintivamente somos mais atentos e abertos a ideias que estão de acordo com nossas crenças e a forma como vemos o mundo, menosprezando e até ignorando informações que sejam conflitantes.

Este fenômeno agravado pelos algoritmos que filtram o conteúdo a que somos expostos de acordo com nossos comportamentos e preferências passadas, aos Fake News e à crescente antipatia pela ciência e expertise podem levar a um duelo de visões distintas e polarizadas da realidade que dificultarão a sensibilização da população em relação à gravidade da situação e do comprometimento com as medidas a serem tomadas.

Nem sempre a lógica e dados são as melhores ferramentas para contornar este viés. Para convencer alguém de algo que vai contra o sistema de crenças dele é necessário confrontar o sistema de crenças e não a opinião ou ponto de vista.

Este artigo do The Washington Post fala sobre como a afiliação partidária influencia a forma como os americanos republicanos e democratas estão vendo e reagindo à crise e mostra que a partir do momento em que a crise é experimentada mais de perto tocando em valores fundamentais comuns a todos como Família (um dos instintos mais primitivos que temos e valor número 1 no mundo segundo o Roper) a discussão fica mais fluida e a absorção dos fatos mais fácil.

Outro viés que pode ser utilizado para sensibilizar a sociedade é o “Identifiable Victim Effect”: ao invés de falar em números de infectados e mortos contar a história de indivíduos, isto tem um poder muito maior de despertar emoções e empatia.

 

“If I look at masses, I will never act. If I look at the individual, I will.

Madre Teresa de Calcutá 

 

Se uma das medidas a ser tomada para desacelerar o ritmo das infecções e evitar o colapso dos sistemas de saúde são as quarentenas uma reação comum é a de “Reactance”: quando temos nossa liberdade ameaçada ou cerceada de alguma forma temos a tendência de nos rebelar. É o que observamos com nossos filhos e adolescentes: sempre que dizemos o que fazer, eles fazem exatamente o oposto... Todos nós em uma certa medida temos este comportamento instintivo...

Mas se por um lado temos esta natureza de nos rebelarmos quando vemos nossa liberdade ameaçada, também temos a necessidade de ser aceitos, fazer parte e somos fortemente influenciados por como os demais se comportam, em especial pessoas pelas quais temos admiração e respeito (Social Proof). Daí a importância dos líderes e influenciadores (artistas, esportistas,...) darem o exemplo e incentivarem o comportamento desejado.

O poder do comportamento das massas pode ser tanto positivo quanto perigoso. Quando as pessoas começam a seguir o comportamento dos demais sem grande reflexão tem-se o “Efeito manada” que pode levar a uma “cegueira coletiva” e colocar o grupo ou indivíduos em risco. Ao saber que muitas pessoas estão comprando cloroquina sem ter prescrição médica porque acredita-se que pode ser um remédio eficaz contra a COVID-19, mais e mais pessoas vão atrás do medicamento e aquelas que realmente precisam do mesmo por outras condições pré-existentes e para o qual o medicamento é de fato indicado acabam sofrendo com o desabastecimento.

Algo similar explica, ao menos em parte, o fenômeno da grande demanda pelo “papel higiênico”. Ao ver as gôndolas vazias e o item nos carrinhos dos outros somos influenciados a também comprá-lo, independente de nossa real necessidade pelo item. Neste caso atua também um fenômeno relacionado ao alívio da ansiedade. Diante da situação que estamos vivendo nos sentimos vulneráveis, sem o controle da situação, sem saber ao certo o que fazer e, neste contexto, comprar papel higiênico nos ajuda a aliviar a tensão e nos sentir, mesmo que artificialmente, novamente em controle da situação - “Ufa, estamos abastecidos!”. Clique aqui para acessar um artigo interessante sobre o tema.

Ter consciência destes fenômenos e refletir sobre o que de fato está impulsionando nossas compras e decisões é o que nos ajudaria a ser menos irracionais nestes momentos.

Aqui um exemplo interessante de como o varejo pode ajudar a evitar que as pessoas comprem além do necessário e permitir que mais consumidores tenham acesso aos itens de primeira necessidade.

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“5 euros 1 garrafa – 140 euros para cada garrafa adicional”

 

Outros vieses cognitivos extremamente importante que os líderes e aqueles à frente da gestão da crise tenham consciência neste momento em que as decisões tomadas são de extrema importância: 

 
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Group Thinking

A tendência natural que temos da busca pelo consenso e o perigo de quando estamos todos pensando da mesma forma. 

“When we all think alike, then no one is thinking”

Walter Lippman

Daí a importância da diversidade dos grupos (homogeneidade acentua group thinking), de um esforço consciente para analisar opiniões discordantes e re-checar decisões unânimes e um processo de decisão que favoreça que os diversos pontos de vista sejam de fato trazidos a mesma (sem a intimidação da hierarquia, poder, senioridade,...); 

 
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Tunneling ou Cegueira Não Intencional

Quando enfrentamos uma situação emergencial e de risco temos a tendência a apenas focar na emergência, ficamos cegos ao nosso entorno e podemos perder a perspectiva de riscos maiores e até de possíveis soluções.

 
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Nós somos o que medimos

Repetimos comportamentos que são reconhecidos, premiados independentemente destes comportamentos nos levarem ao sucesso. Nosso comportamento se ajusta às métricas pelas quais somos medidos. Hoje as principais métricas são número de contaminados e de vítimas fatais. O foco e os esforços estão concentrados em reduzir o número de vítimas fatais, “achatando” a curva de contaminação para que haja mais tempo para melhor estruturar os sistemas de saúde e conseguir melhor atender à demanda. Estas são as métricas, aí está o reconhecimento para os gestores da crise e o esforço das ações. Mas será que apenas estas são as métricas que nos levarão à uma melhor resolução da crise? 

 

Neste contexto é importante ouvir opiniões e propostas sérias à quarentena e ao isolamento social horizontal prolongado pensando também nos efeitos colaterais dos mesmos e como podemos minimizá-los (efeitos estes não restritos à economia, recessão e desemprego mas que também serão sentidos nas áreas da saúde com aumento de caso de depressão, adiamento de tratamentos de outras doenças graves,... e da segurança pública com o potencial aumento da violência). Esta discussão já se iniciou mas está muitas vezes tomando contornos de Fla X Flu sem a devida profundidade e reflexão. 

Os líderes precisam desenvolver modelos mentais que os permitam ver além do ponto focal da crise, times diversos de fato com representantes de diferentes áreas de conhecimento (médicos, cientistas, economistas, sociólogos,...) e perspectivas (empresários, trabalhadores, educadores,...) e estar de realmente abertos a ouvir as opiniões sérias que contradizem a linha de pensamento dominante. 

Finalmente queria deixá-los com duas provocações:

Em momentos como o atual, no qual enfrentamos uma situação ameaçadora e desconhecida e que nos sentimos vulneráveis e ameaçados somos ainda mais sujeitos ao viés do Declinismo (tendência a achar que o passado foi melhor do que de fato foi e de projetar o futuro como pior do que de fato será) e ao viés da Negatividade (damos peso maior aos eventos, pensamentos e sentimentos negativos do que aos positivos).

Será que não sairemos desta grave crise fortalecidos e “enlightened” tanto enquanto indivíduos quanto sociedade? 

Será que esta será de fato a pior crise desta geração?